OS
INVISÍVEIS
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O jardineiro, no episódio de Depois do Funeral (2006) da série de TV Poirot, com David Suchet como Hercule Poirot |
Você saía tranquilamente da estação de metrô ou de uma
agência bancária quando foi repentinamente abordado por alguns policiais. Muito
sério e preocupado, o investigador de polícia lhe pede o favor de ajudar em um
caso urgente e solicita que você descreva ali mesmo, com o máximo de detalhes
possível, o faxineiro que limpava o chão da plataforma onde você acabou de
saltar ou descrever o rosto do terceiro vigilante à esquerda, dentro do banco onde você acabou
de fazer um saque. Trata-se de um caso de vida ou morte! Você entra em pânico:
apesar de ser uma pessoa observadora e especialmente de ser um grande fã dos
livros de Agatha Christie, você simplesmente não consegue se lembrar dos rostos
daquelas pessoas!
Bem, foi a própria Agatha Christie que disse certa vez aquilo
que todos nós já sabemos e que permanece sendo uma verdade, inclusive aqui no
Brasil:
Praticamente ninguém nota aquelas pessoas cujo ofício é o de nos servir
cotidianamente.
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A copeira, no episódio Cipreste Triste (2003) da série de TV Poirot, com David Suchet como Hercule Poirot |
A ÉPOCA DO "CADA UM EM SEU DEVIDO LUGAR"
Agatha Christie escreveu em uma época na qual muitas famílias
ainda possuíam equipes de empregados domésticos, os quais mantinham as suas casas
funcionando a contento. Ambientadas em respeitáveis vilas do interior ou em
mansões vitorianas, ou ainda em hotéis luxuosos, trens, navios, clubes exclusivos
e outros locais habitualmente frequentados pelas classes média e alta da época,
as estórias da Rainha do Crime frequentemente apresentam em seu pano de fundo um
staff de toda sorte: criados particulares, mordomos, cozinheiras, jardineiros,
arrumadeiras, governantas, babás, garçons, copeiros, motoristas, ajudantes e serviçais
variados. Quem não conhece Miss Felicity Lemon, a eficiente secretária de
Hercule Poirot?
Todavia, diferente do que acontece com Miss Lemon, que
ganhou personalidade e importância na mesma medida em que seu 2º patrão foi
acumulando fama (seu patrão antes de Poirot era o detetive Parker Pyne! Leia artigo deste blog sobre os caminhos cruzados dos dois detetives em: http://agathachristieobraeautora.blogspot.com.br/2014/01/last-but-not-least-caminhos-cruzados.html), os outros membros da classe trabalhadora servil nas estórias de Agatha Christie
são avistados por todos – os outros personagens e nós, os leitores – mas não
recebem muita atenção, sendo geralmente ignorados.
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O mordomo, no episódio Cartas na Mesa (2005) da série de TV Poirot, com David Suchet como Hercule Poirot |
O GRANDE ERRO:
AVISTADOS POR TODOS, IGNORADOS POR TODOS
Bem, isto quando chegam a ser de fato vistos! Depois daquele
sofisticado jantar na mansão dos Fulanos de Tal, depois que um grito horrível é
ouvido e um corpo esfaqueado é encontrado sobre o caríssimo tapete persa da
biblioteca, depois que a policia é chamada, as provas e as fotos tiradas pelo
perito e o corpo removido, depois que todos se sentam confortavelmente na sala
de estar para darem seus depoimentos ao investigador, nós sabemos, sem precisar
que ninguém nos diga, que um ou mais empregados conseguirão remover a mancha de
sangue do tapete, juntar os cacos do vaso de flores quebrado sobre a mesinha,
trocar a cortina que teve um pedaço rasgado, reorganizar as revistas que foram
espalhadas e recolocar em seu lugar a poltrona que havia sido empurrada para o
lado.
E o que dizer daquele inacreditável criado em E Não Sobrou Nenhum (And Then There Were None, 1939), que se encontrava detido na ilha exatamente como os outros, e que, apesar das sucessivas e misteriosas mortes que iam deixando todos apavorados, continuava servindo o jantar e desempenhando outras tarefas domésticas de modo impassível?
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O criado, em cena do filme "E Não Sobrou Nenhum" (1965) |
MAS, CUIDADO:
ELES TUDO VÊEM, TUDO ESCUTAM,
TUDO SABEM!
Entretanto, isto não significa que os criados não
desempenhem com frequência um papel de vital importância para as tramas. As
pessoas tendem a não os notarem porque eles agem silenciosamente, entram sem
fazer qualquer alarde, se posicionam nos cantos sombrios dos aposentos, e desaparecem
pelas portas dos fundos ou laterais, tudo como deve ser com um típico e bem
treinado serviçal vitoriano, daqueles que conhecem
o seu lugar, como se diz.
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A cozinheira (ocupada, na cozinha) - cena do episódio Punição para a Inocência (2007) do seriado Marple |
Porém, a verdade é que as pistas que eles são
capazes de fornecer são preciosíssimas, uma vez que o staff de empregados
domésticos, em função de suas tarefas, veem coisas, escutam coisas, acham
objetos, percebem modificações que ninguém mais vê, escuta, encontra ou nota. O
bom detetive sempre leva em conta todos os empregados envolvidos, questionando tanto
os serviçais eventuais externos como os criados da casa, especialmente aqueles
cujas tarefas são as mais rudes ou humildes: quando o mistério está muito intrincado,
é justamente neles que se pode encontrar a chave.
A copeira, no episódio Tragédia em Três Atos (2011) da série de TV Poirot, com David Suchet como Hercule Poirot
A GRANDE JOGADA DE AGATHA CHRISTIE!
Sabendo muito bem disso, Agatha Christie fez uso de vários
esquemas criativos que envolviam empregados e trabalhadores afins em suas
estórias. Certa de que a classe dos serviçais passa desapercebida aos olhos dos
outros personagens e deles geralmente não merecem muita atenção, Dame Agatha se utilizou do próprio senso
de superioridade destes personagens, ideia comum e perfeitamente aceitável
conforme os padrões culturais da época, contra eles mesmos, ou seja, para
enganá-los – e a nós também!
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O comissário de bordo no episódio Morte nas Nuvens (1992) da
série de TV Poirot, com David
Suchet como Hercule Poirot
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Em outras ocasiões, porém, alguns empregados estão fadados a
um destino cruel. Por serem faladores demais, tolos demais, descuidados demais
ou até mesmo eficientes demais, são os criados que se tornam vítimas nas estórias
por que sabiam demais. Ou, pelo menos o assassino achou que sabiam. De qualquer
forma, eles precisam ser silenciados, e a única forma que o criminoso vê é através
da morte. De fato uma grande injustiça com aqueles para quem a vida não foi
justa desde o princípio, pois quando finalmente sua existência é notada, o
criminoso também percebe o perigo que eles representam para seus planos. Não
era mesmo fácil a vida de criado nas estórias de Agatha Christie!
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O policial sentinela no episódio Morte nas Nuvens (1992) da série de TV Poirot, com David Suchet como Hercule Poirot |
É interessante ressaltar que os criminosos nas estórias da Dama
do Mistério raramente pertenciam ao staff doméstico. Exceto, é claro, que o
assassino – que não era um criado ou trabalhador serviçal de verdade – tenha se
disfarçado de tanto com o intuito de cometer o seu crime sem ser notado. Afinal,
ninguém vê mesmo direito um criado ou presta atenção no que um garçom ou
copeiro está fazendo!
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O capitão do vapor, no filme Morte no Nilo (1978) com Peter Ustinov como Hercule Poirot |
Alguns exemplos deste engenho da autora são:
Atenção:
ending spoiler nos exemplos abaixo!
1- Morte nas Nuvens (Death in the Clouds, 1935), onde o assassino se veste como
comissário de bordo para matar a vítima sem levantar suspeitas para si;
2- Um Drinque de Cianureto (Sparkling Cyanide, 1945),
no qual o assassino se veste de garçom para envenenar um copo de champanhe e silenciar sua vítima;
3- Morte no Nilo (Death on the Nile, 1937),
onde a segunda vítima é a criada tímida e quem praticamente ninguém nota a
presença, mas que havia visto alguma coisa e estava chantageando o assassino, o
qual, por sua vez, a matou.
4- No conto Miss Marple Conta uma Estória (Miss Marple
Tells a Story, 1939), uma segunda arrumadeira consegue entrar na suíte de
um hotel em plena vista de todos sem que ninguém estranhe e muito menos note
seu rosto em particular.
5- Em Tragédia em Três Atos (Three Act Tragedy, 1935),
o assassino se disfarça de garçom para cometer seu crime sem que ninguém
perceba.
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Vítima em Um Drinque de Cianureto (1993)
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