... E SIMPLESMENTE ADORAMOS ISSO!!!
caricatura de Agatha Christie |
Se Agatha Christie vivesse nos tempos atuais e resolvesse
enveredar pela moda dos livros que ensinam como
fazer tudo você mesmo, certamente o seu best seller teria um título
parecido com: Como Enganar o Leitor com
Pistas Falsas, ou Como Fazer o Mais
Esperto Leitor de Bobo, ou algo parecido.
Bem, pensando melhor, Agatha Christie, que foi uma
verdadeira dama e a própria gentileza, jamais aprovaria o segundo título que
sugeri. Mas, cá entre nós, não é bem assim que você se sente ao final do livro,
quando Hercule Poirot ou Miss Marple expõem as pistas – que estavam todas lá! –
relembram os fatos – que também estavam todos lá! – e traçam um raciocínio
lógico e óbvio para a solução do crime?
Ficamos todos nos perguntando: mas como eu deixei passar
isso e aquilo? Ou exclamando: puxa vida, é claro! Algumas pessoas que eu
conheço juram que descobriram o criminoso antes do final. Hum, bem, eu não sou
uma delas – e nem nunca fui! Porém, como costumam fazer praticamente todos os
leitores de Agatha Christie, acreditamos que no próximo livro vamos vencer. Afinal, a esperança é mesmo a
última que morre! Mas quando o mistério vai ficando mais denso e mais
intricado, quando aquele personagem que juramos que é o culpado é
repentinamente assassinado, ou quando alguma reviravolta inesperada qualquer
ocorre, nos vemos mais uma vez irremediavelmente emaranhados na teia cuidadosamente tecida pela Rainha do crime. E simplesmente adoramos isso!
obs: O ensaio a seguir NÃO contém ending spoiler.
Todas as fotos são puramente ilustrativas.
OS
MISTÉRIOS NÃO TEM SEGREDOS
Mas como será que ela consegue? A resposta não tem
mistérios: porque Agatha Christie é mestra em sua arte. E o que podemos
apreender desta arte, ou seja, do método utilizado pela escritora para bolar
enredos que mexem com os nervos e os neurônios dos leitores de tão ricos em
mistérios? A resposta para esta pergunta também é mais simples do que se
imagina.
Muitos estudiosos se debruçaram sobre a obra de Agatha Christie
na tentativa de desvendar seu método de criação de estórias com mistérios
intricados, e muitas análises críticas altamente interessantes – porém
complexas – surgiram.
Em contrapartida, eu pretendo aqui neste artigo simplificar
bastante as coisas – bem ao estilo de nossa Rainha – e destacar apenas 2
elementos cruciais em suas estórias de crime e mistério: as pistas e o culpado, e
a partir deles, apontar apenas 2 aspectos basilares de seu método.
1- AS
PISTAS:
1.1 - UM SHOW
DE MÁGICA
Em primeiro lugar, Agatha Christie sempre joga limpo com
seus leitores. Isto significa que as pistas são sempre fornecidas; o problema é
que nós é que falhamos em reconhecê-las como tal, ou seja, não damos a devida
importância às pistas que, sim, nos são apresentadas.
É muito comum as pessoas chegarem ao final do livro e
voltarem alguns capítulos, ou até relê-lo, na intenção de localizarem as tais
pistas que deixaram passar da primeira vez. E sempre as encontram em alguma
passagem, perdidas, disfarçadas.
E aí que entra a habilidade
nº. 1 de Agatha Christie: sua capacidade de desviar nossa atenção da alta
relevância das pistas, que na verdade estão bem diante de nós. Algo assim como
um mágico com dedos ágeis, fazendo desaparecer moedas e notas bem debaixo de
nossos narizes e aparecerem flores. Aparentemente de forma distraída, porém, na
verdade, inteiramente de propósito, a escritora disfarça as pistas verdadeiras
em meio a outros acontecimentos que funcionam como pistas falsas, nos
enganando, tais quais as hábeis mãos do mágico.
1.2 - AGULHAS
NO PALHEIRO
E como se não bastasse a capacidade em disfarçar as pistas
importantes, Agatha Christie inunda o leitor com fatos diversos, os quais, por
sua vez, apontam para outras tantas pistas em potencial, de modo que acabamos
nos confundindo e nos enrolando com tantas possíveis pistas espalhadas diante
de nós.
Resultado: a habilidade
nº 2 da Rainha do Crime. Somos conduzidos por ela ao ponto em que, diante
de tamanho emaranhado, não conseguimos mais distinguir as boas pistas, que
levam à solução do caso, daquelas irrelevantes. É exatamente como se, a cada
enredo bolado pela escritora, tivéssemos que encontrar uma agulha no palheiro!
2- O
CULPADO:
2.1 - UM
ROSTO NA MULTIDÃO
Golconda (1953) do pintor René Magritte |
O mesmo princípio da agulha no palheiro referente às
pistas quentes, as quais nos conduzem
à solução do mistério, se aplica a identificação do culpado. Divisar uma certa
pessoa, sozinha ou em um grupo formado por poucas outras, em um campo, em uma
rua ou em uma sala é fácil. Todavia, como encontrar uma determinada pessoa em
especial em uma multidão, como em um show de rock ou em um estádio de futebol?
E, para dificultar ainda mais, como fazê-lo se você nem sabe direito quem ou
como a pessoa é, e se esta pessoa se esforça ao máximo para se esconder de
você?
Agatha Christie jamais economiza na quantidade de suspeitos
em suas estórias – e esta constitui sua habilidade
nº 3. Os possíveis culpados vão emergindo a cada página nos primeiros
capítulos e se acumulando, enquanto nós, ávidos e pobres leitores, vamos nos
perdendo na multidão.
Com tantos culpados em potencial, tornam-se bem reduzidas as
chances de perseguirmos o verdadeiro criminoso desde as primeiras páginas.
Trata-se de uma questão simples de probabilidade. E, como nos ensinou Albert
Einstein, a verdadeira genialidade é sempre simples!
2.2 - ESQUELETOS
NO ARMÁRIO
Aí então um sujeito mais cético que ainda não leu nenhum
livro da escritora diria: “Ah, é impossível que tantas pessoas diferentes
possam ter um motivo aceitável e crível para ter assassinado uma mesma vítima
em particular!”
E outro, um ávido leitor da Rainha do Crime (e secretamente
irritado por ter sido tantas vezes gentilmente ludibriado pelas tramas de
Agatha Christie): “Ah, mas não importa se aparecem tantos suspeitos. Basta irmos
logo eliminando aqueles obviamente mais improváveis.”
Bien,
bien,
não tão depressa, mes amis! – como
diria Hercule Poirot.
Primeiramente, não há culpados
improváveis. Não apenas nos livros de Agatha Christie, mas em toda boa
literatura de crime e mistério, o atrativo mais instigante reside no fato de
que o mais improvável e desapercebido personagem acaba sendo o criminoso.
Em segundo lugar – e aqui vem a habilidade nº. 4 da escritora – Agatha Christie toma o cuidado em
criar tramas nas quais de fato várias pessoas possuem, sim, motivos
perfeitamente coerentes e justificáveis para terem sido o criminoso em questão.
Deste modo, praticamente qualquer um pode ser o assassino ou o criminoso.
Consequentemente, à medida que a estória se desenrola,
torna-se cada vez mais difícil eliminar personagens cuja responsabilidade pelo
crime teria ficado completamente fora de questão. Ao contrário do que se espera
e do que normalmente ocorre em outros romances policiais, nas obras de Agatha
Christie, ao passo que o enredo progride, todo mundo parece esconder algum
esqueleto no armário, como se diz na expressão inglesa, ou seja, tem alguma
culpa no cartório!
Como uma experiente maestrina movimentando sua batuta,
somente na hora H a escritora permite que certos suspeitos sejam eliminados de
nossa lista, apresentando os devidos argumentos e justificativas para tanto,
tal qual um compasso afinado. Até que no desfecho, com uma trilha sonora
imaginária ao som de rufar de tambores, as pistas boas nos são destacadas, os
fatos coerentes nos são lembrados e o verdadeiro criminoso nos é finalmente
apontado.
NINGUÉM
ESCAPA DO LABIRINTO ERGUIDO
POR AGATHA CHRISTIE
Normalmente, nós não damos a devida importância
às pistas apresentadas, pois em geral somos desprovidos das células cinzentas
tão aguçadas de Poirot ou dos olhos sagazes e da experiência de vida de Miss
Marple. E até mesmo estes dois muitas vezes se deixam iludir por algum
artifício e não se dão conta do quão significativas certas pistas são.
Julia McKenzie como Miss Marple |
São aqueles episódios em que Miss Marple
gentilmente declara:
Creio que eu tenho sido
grandemente estúpida;
David Suchet como Poirot |
enquanto Poirot, aborrecido, brada:
Mas eu tenho sido um
imbecile, mon ami, um imbecile!
E com isso nos confortamos em ver que até mesmo
os dois detetives geniais acabam por vezes tontos e perdidos nos meandros do labirinto habilmente erguido pela Rainha do Crime.
Gerações após gerações, países e mais países, culturas
diferentes de outras culturas: todos nós compartilhamos da mesma experiência:
cedo ou tarde, todos somos enganados e feitos de bobo pelos mistérios
engendrados pela da Rainha do Crime – e não apenas uma, porém várias vezes.
E simplesmente adoramos
isso!!