Comer: algo tão humano, natural e simples. Ah,
mas não – é claro! – para Hercule Poirot!
Quando a hora do
repouso chega, (...) o financista aposentado dedica-se ao golfe; o pequeno
comerciante planta bulbos em seu jardim; eu, eu como.
(Hercule Poirot em A Morte da Senhora McGynty)
Comer, para o peculiar detetive belga criado por
Agatha Christie, está muito além de uma simples necessidade fisiológica
cotidiana: para ele, comer é um ritual. E, como em todo ritual que se preze, este
está recheados de regras a serem cumpridas, de passos a serem seguidos, de
detalhes a serem observados.
Do formato das torradas ao tamanho dos ovos –
que devem ser perfeitamente iguais, da consistência do chocolate quente à
intensidade do café, do preparo da carne ao sabor das salsichas, da quantidade
à hora certa de se comer cada coisa: Poirot imprime com sua personalidade no
ato de se alimentar.
Neste artigo, selecionei alguns trechos nos quais
Poirot revela suas manias e excentricidades para fazer suas refeições, o que
acaba resultando em passagens por vezes cômicas ou divertidas.
Então, prenda seu guardanapo na gola da camisa e cubra bem o peito, sem se importar com os costumes locais, pois nenhuma migalhinha sequer pode cair sobre sua roupa, e deguste desta passagens icônicas.
Afinal, sendo ele o dono de fabulosas células
cinzentas, o estômago de Poirot não poderia ser também um órgão comum e igual
aos dos pobres mortais!
ORDEM E MÉTODO
TAMBÉM PARA COMER
[Cap.
Hastings]
Poirot
tinha uma particular rotina quando abria sua correspondência. Pegava uma carta
de cada vez, observava-a em todos os seus detalhes, e depois a abria com a
espátula. O conteúdo era lido com atenção e. em seguida, colocado em uma das
quatro pilhas atrás do bule de chocolate (ele sempre tomava chocolate pela manhã,
o que era abominável).
(Poirot
Perde uma Cliente)
[Poirot]
Uma pessoa só pode comer três vezes por dia. E
os intervalos são os hiatos.
(A
Morte da Senhora McGynty)
[Srª Oliver]
— O
melhor é vir me contar tudo. Quando pode ser? Venha tomar chá hoje de tarde.
— Eu
não tomo chá à tarde.
—
Então, café.
—
Não é a hora do dia em que costumo tomar café.
(A
Terceira Moça)
O FAMOSO
CASO DA TORRADA ASSIMÉTRICA
[Cap.
Hastings]
De
súbito, empertigou-se e apontou dramaticamente um dedo ao prato das torradas.
– Ah, par exemple, c’est trop fort!
– É
demasiado forte o quê?
– Esta
torrada. Não vê? Tirou, lesto, a
transgressora do prato e a estendeu para
que a examinasse.
– É
quadrada? Não. É triangular? Também não. É sequer redonda? Tão pouco. Tem uma
forma remotamente agradável ao olhar? Que simetria temos aqui? Nenhuma!
– Foi
cortada de um pão caseiro, Poirot –, expliquei em tom brando, tentando acalmá-lo.
Mas Poirot lançou-me um olhar gelado.
– Que
inteligência a do meu amigo Hastings! – exclamou, sarcástico. – Não compreende que proibi
semelhante pão, um pão feito à toa,
informe, que nenhum padeiro deveria permitir-se fazer!
(Assassinato no Campo de Golfe)
LE DINER
– A REFEIÇÃO PREDILETA
[Poirot]
Chocolate com croissants de
manhã cedo, déjeuner ao meio-dia — se possível —mas certamente nunca depois de uma hora da
tarde, e finalmente, o clímax: Le diner!
(A Morte
da Senhora McGynty)
[Poirot]
E o jantar, é preciso que se lembrem, é a refeição suprema do dia!
(A Morte
da Senhora McGynty)
LES ANGLAIS, LES ANGLAIS...
David Suchet como Hercule Poirot e Philip Jacksoncomo Inspetor Japp |
[Poirot]
Gostaria
de tomar uma xícara de chocolate bem grosso neste momento, mas na Inglaterra
não sabem fazer um bom chocolate.
(A Casa Do Penhasco)
[Poirot]
Ai de mim! — murmurou Poirot com seus bigodes — é uma pena que uma
pessoa só possa comer três vezes ao dia... — Pois o chá da tarde era uma
refeição à qual ele nunca se habituara. — Se tomarmos o chá das cinco —,
explicava ele, — não chegaremos à hora do jantar com a quantidade adequada de
sucos gástricos.
(A Morte da Senhora McGynty)
[Cap.
Hastings]
Passaram-se
quase cinco minutos até a volta de Poirot. Com sua
usual
precaução contra doenças, estava coberto até as orelhas. Sentou-se ao meu lado
e tomou um lento e gostoso gole de café.
— Só
na Inglaterra o café é tão horroroso — comentou. — No continente sabem apreciar
sua importância na digestão e o preparam como é devido.
(Os Quatro Grandes)
A
chaleira estava no fogo, e, a seu lado, havia uma pequena panela esmaltada,
contendo um pouco de chocolate, espesso e doce, que agradava mais ao paladar de
Poirot do que a coisa que ele descrevia como "o veneno inglês".
(O
Desaparecimento do Sr Davenheim)
CHOCOLATE: QUE SEJA MUITO, MUITO DOCE!
David Suchet como Hercule Poirot |
Hercule
Poirot gostava de coisas doces. Estava sentado à mesa do café, tendo à sua
frente uma xícara de chocolate fumegante, à qual um brioche fazia boa
companhia.
(A Terceira Moça)
[Hastings]
Do
lado de Poirot, havia uma xícara com uma mistura espessa e forte de chocolate,
que eu não beberia nem que me dessem cem libras. Poirot pegou a xícara de porcelana
rosa e tomou um gole da beberagem, suspirando, contente.
- Quelle belle vie! - murmurou ele.
(A Caixa De Bombons)
[Cap. Hastings]
Não pude
furtar-me a engolir uma chávena do seu enjoativo chocolate.
- Restabelece os
nervos, compreende? - explicou Poirot. Bebi para mostrar-lhe que aceitava o
argumento.
(Cai o Pano)
Às
4h15m daquela tarde, Poirot estava sentado na sala de visitas da Sra. Oliver,
tomando com prazer uma xícara de chocolate, generosamente encimada por uma
coroa de creme chantilly, que a
dona da casa colocara à sua frente, juntamente com um pratinho cheio de
biscoitos língua de gato.
(A Terceira Moça)
COMER: OBJETO DE PESQUISA INTELECTUAL
Sempre fora um homem que levava o estômago muito a sério.
(A Morte da Senhora McGynty)
Poirot
mastigava com ar de aprovação: o brioche era o resultado de uma busca que o
levara a quatro padarias. Este era de uma patisserie dinamarquesa; apesar disso, infinitamente superior ao
de outro estabelecimento, que se intitulava francês e não passava de uma
impostora. Ele estava gastronomicamente satisfeito, com o estômago em paz.
Também o cérebro estava em paz, talvez um pouco mais do que convinha.
(A
Terceira Moça)
O Vieille Grand'mère fora o resultado de uma destas pesquisas, e agora
acabara de receber a chancela de aprovação gastronômica de Hercule Poirot.
(A Morte da Senhora McGynty)
NADA DE MODERNIDADES!
[Srª
Oliver]
—Se preferir
esse café sem cafeína que
apareceu
agora, posso tentar conseguir...
— Ah, ça non,
par example! É
detestável!
—
Então, um refresco, daqueles que o senhor gosta tanto.
Acho
que ainda tenho meia garrafa de Ribena.
— O
que é Ribena?
—
Sabor de groselha.
— É
mesmo impossível resistir-lhe, madame! A senhora
realmente
não aceita recusas, e sou-lhe grato pela amabilidade. Aceito, então, tomar uma
xícara de chocolate hoje à tarde.
(A Terceira Moça)
CHÁ É BOM, MELHOR AINDA SE FOR O TISANE
David Suchet como Hercule Poirot |
Ele agora
estava sentado na cama, apoiado em travesseiros, com a cabeça envolta por um
xale de lã, tomando lentamente uma tisane particularmente insalubre, que eu
preparara de acordo com suas instruções meticulosas.
(O
Mistério de Hunter’s Lodge)
[Poirot]
— Agora podemos dormir
em paz. E bem que estou precisando de algum sono! Minha cabeça está doendo
terrivelmente. Ah, o quanto eu não daria agora por uma boa tisane!
(A Aventura da Tumba Egípcia )
[Srª
Oliver]
—
Chocolate? Com creme chantilly por
cima? Ou um chá de ervas? O senhor adora um chazinho de ervas.
(A Terceira Moça)
POIROT OFERECE UM JANTAR
David Suchet como Hercule Poirot |
—
Afinal de contas, até que é possível comer bem na Inglaterra — murmurou
Fournier com admiração, enquanto usava delicadamente um palito colocado
providencialmente à mão.
— Um
jantar delicioso, M. Poirot — declarou Thibault.
—
Meio afrancesado, mas bom mesmo — sentenciou Japp.
—
Uma refeição deve ficar sempre leve no estomac
— disse Poirot. — E não ser pesada a ponto de paralisar o raciocínio.
(Morte nas Nuvens)
UM ESTÔMAGO SOFISTICADO
—
Venha, mon vieux
— disse. — O estômago reclama. Uma
refeição simples, mas satisfatória, é o que recomendo. Digamos omelette aux champignons, sole à la Normande
— um queijo de Port
Salut, e vinho tinto para acompanhar. Que
vinho, exatamente?
(Morte nas Nuvens)
“PENA
QUE O CÉREBRO TENHA QUE SER ESCRAVO DO ESTÔMAGO!”
Peter Ustinov como Hercule Poirot |
— Que
tem M. Poirot a declarar em sua defesa? — disse Japp. —Poirot sacudiu tristemente
a cabeça.
— Mon estomac — respondeu, patético. —
Pena que o cérebro tenha que ser escravo do estômago.
— Eu
também — concordou Fournier, solidário. — Não me sinto bem no ar. Fechou os
olhos e sacudiu eloquentemente a cabeça.
(Morte nas Nuvens)
QUANDO POIROT SE TORNA “UM SIMPLES MEMBRO
DA RAÇA HUMANA”
—
Dizem que um exército avança segundo seu estômago — disse Poirot. — Mas até que
ponto as delicadas circunvoluções do cérebro são influenciadas pelo aparelho
digestivo? Quando me vejo atacado pelo mal de mer,
eu, Hercule Poirot, sou uma criatura
sem massa cinzenta, sem ordem, nem método... um simples membro da raça humana
um pouco abaixo da inteligência média! É deplorável, mas que se há de fazer?
(Morte nas Nuvens)
Nenhum comentário:
Postar um comentário