DIFERENTES ESTRATÉGIAS PARA MATAR
parte 1
parte 1
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Agatha Christie |
obs: O artigo a seguir NÃO contem ending spoiler. Fique tranquilo.
Todas as fotos de cenas de filmes são puramente ilustrativas.
Todas as fotos de cenas de filmes são puramente ilustrativas.
Que Agatha Christie era muito esperta ao desenvolver as
tramas para seus livros nós já sabemos. Todavia, e como não poderia deixar de
ser, seus criminosos também o são. Fazendo uso de subterfúgios oportunos,
estratégias frias, esquemas bem bolados ou planos ousados, os assassinos
criados por Agatha Christie tentam fazer de tudo para nos iludir. E, admitamos:
muitas, se não na maioria das vezes, eles bem que conseguem!
Quanto mais improvável for o suspeito – que é de fato o
verdadeiro assassino, melhor. Este é o embasamento de qualquer boa estória de
mistério. Através de uma análise estrutural da obra da Rainha do Crime, podem-se
destacar alguns dos recursos utilizados pelos assassinos na tentativa de saírem
impunes de seus crimes, e de, por tabela, confundirem os investigadores e a
nós, os leitores. Como exemplos destes recursos, temos as técnicas:
1- Técnica do disfarce:
a) os personagens que fazem uma alteração em sua identidade;
b) os personagens que adotam uma identidade inteiramente falsa.
b) os personagens que adotam uma identidade inteiramente falsa.
2- Técnica de se fazer de vítima:
a) a falsa vítima em potencial;
b) a falsa vítima fatal.
3- Técnica do álibi:
a) o álibi sólido;
b) o álibi perfeito.
4- Técnica da identidade surpreendente;
5- Técnica da conspiração;
6- Técnica de mascarar um assassinato com outro:
a) a tentativa de assassinato;
b) o assassinato real;
c) o falso assassinato.
7- Técnica da manipulação;
8- Técnica do blefe:
a) o blefe essencialmente maligno
b) o blefe vingador
9- Técnica do assassino bom moço;
10- Técnica do fiel protetor;
11- Técnica da calúnia.
É importante salientar, no entanto, que a classificação que eu elaborei, em primeiro lugar, consiste em apenas uma das várias possíveis perspectivas de análise crítica estruturalista sobre a obra de Agatha Christie; e, em segundo lugar, não eu pretendo ser conclusiva nem tampouco dar conta de todas as técnicas existentes em sua vasta obra das diferentes formas utilizadas pelos assassinos para dar cabo de suas vítimas.
Neste artigo, vou tratar apenas das 5 primeiras técnicas
acima listadas, descrevendo as demais 5 na próxima publicação.
CLASSIFICAÇÃO DAS TÉCNICAS DOS ASSASSINOS
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Cena do filme "E Não Sobrou Nenhum" (1965) |
APARÊNCIAS QUE ENGANAM:
1- a
técnica do DISFARCE
Por mais simples e tradicional que possa parecer, o disfarce
utilizado pelo malfeitor, quando bem executado, surte os efeitos esperados a
contento, ou seja, engana a todos os outros personagens direitinho. E a nós
também. A ideia é assumir uma identidade supostamente acima de suspeitas, a fim
de cometer o crime ou de seguir incógnito sua desejada vítima.
Quando a técnica do disfarce é utilizada nas primeiras
estórias de Agatha Christie, alguns dos personagens geralmente têm a impressão de
que um determinado suspeito lhe parece familiar. Nos livros mais tardios,
porém, a escritora abandonou este recurso. Em todo caso, mesmo quando alguém suspeitava
já ter visto algum personagem antes, nem sempre este personagem era de fato
quem estava disfarçado, de modo que esta não poderia mesmo ser considerada uma
boa dica.
A técnica do disfarce divide-se em dois grandes grupos:
a) o dos personagens que fazem uma alteração em sua
identidade;
b) o dos personagens que adotam uma identidade inteiramente
falsa.
Algumas vezes, o assassino faz parte do início da trama,
depois desaparece completamente e então retorna à estória, desta vez disfarçado
como outro personagem qualquer. Em outras ocasiões, o personagem finge ser um
membro da família que há muito perdeu o contato com os demais e que retornou,
ganhando, assim, a confiança dos demais.
Interessante salientar que a técnica do disfarce não é uma
exclusividade dos criminosos: várias vezes, outros personagens se utilizam dela
por motivos justificáveis e que são revelados a seu tempo. Logo, ao ler um
livro e perceber desde cedo que alguém está disfarçado na estória também não
quer dizer muita coisa sobre quem é o assassino.
INVERSÃO
DE PAPÉIS:
2- a
técnica de SE FAZER DE VÍTIMA
A menos que se trate de um caso de suicídio, uma pessoa ou é
a vítima, ou é o culpado. Simples
assim. E, como sabemos, a verdadeira genialidade é simples. O assassino
esperto conhece esta máxima, e portanto providencia um meio de se passar pela
vítima – uma falsa vítima, é claro, mas os outros personagens não sabem disso. E,
consequentemente, acabam acreditando que justamente o criminoso é o mais inocente
de todos, pois, afinal, ele é a pobre vítima!
A técnica de se fazer de vítima se subdivide em dois tipos:
a) o da falsa vítima em potencial;
b) o da falsa vítima fatal.
Para se fazer de vítima perfeita e irrefutável, o assassino,
nos casos mais frequentes, cria uma escaramuça na qual fica aparentemente
evidente que ele ou ela seria a pessoa que alguém está pretendendo matar, ou
seja, a vítima em potencial. Nestes casos, ele geralmente ganha a simpatia do
leitor e da polícia, e muitas vezes também do detetive, afinal, todos se
apiedam do pobre coitado.
Em outros casos, o assassino mais ousado consegue encenar
sua própria morte, transformando-se em uma (falsa) vítima fatal. E, como os
mortos não ressuscitam, quem poderia estar mais cortado da lista final de
suspeitos do que aquele sujeito que morreu logo no início da trama? No próximo
livro de Agatha Christie que ler, espere até o epílogo antes de se apiedar pelo
pobre falecido!
ACIMA DE QUALQUER SUSPEITA:
3- a técnica
do ÁLIBI
Quando um inocente não consegue apresentar um bom álibi, por
mais angelical que seja, entra para a lista de suspeitos. Em contrapartida, um álibi
irrefutável pode salvar a pele de qualquer um – mesmo do mais vil e cruel
assassino. O álibi, portanto, desempenha um papel crucial na linha de
investigação a ser seguida bem como na condenação final de um criminoso – e o
assassino esperto sabe muito bem disso.
A técnica do álibi se subdivide em dois tipos:
a) o do álibi sólido;
b) o do álibi perfeito.
Assim, em algumas estórias, o assassino se esconde por trás de
um álibi sólido e consistente, sustentado por evidências fortes e fatos plausíveis,
as quais levam todos a acreditarem em sua total inocência, até que, no último
instante, o álibi desmorona e nos é revelada a verdade.
Em outras narrativas, porém, o álibi é tão perfeito que
posiciona o verdadeiro assassino desde o princípio em um patamar acima de
qualquer suspeita. É o que ocorre quando o papel desempenhado pelo criminoso na
sociedade é justamente aquele de combater o crime: quando o assassino é o
policial ou o detetive. Este tipo de álibi não necessita de evidências ou de
explicações, pois nos ilude de imediato sobre a verdadeira identidade do
assassino.
ADIVINHA
SÓ QUEM É?
4- a
técnica da IDENTIDADE SURPREENDENTE
Quando pegamos uma estória de crime e mistério para ler, algumas
premissas básicas estão predefinidas. Ou não!... Quem está acostumado com o
padrão do mistério intrincado, do detetive genial e meio excêntrico, das pistas
– algumas falsas, outras verdadeiras – do conjunto de suspeitos – alguns muito
improváveis, outros óbvios – das reviravoltas e surpresas ao longo da
narrativa, e que imagina que já viu de tudo no universo dos livres de
investigação criminal, ainda poderá se surpreender com Agatha Christie. Afinal,
não é em vão que ela recebeu o titulo de Rainha do Mistério!
Alguns dos recursos literários mais criativos apresentados
pela escritora – e reconhecidos mundialmente como tal – tratam justamente da novidade
diante da concepção da identidade do assassino. São aqueles casos em que Agatha
Christie foi a autora pioneira de romances policiais a ter concebido enredos
nos quais o assassino era um
personagem totalmente inesperado, como uma criança, o personagem principal, o próprio narrador, alguém que, como todos pensavam, já havia morrido, ou
simplesmente todos os suspeitos.
O esperto assassino consegue esconder a sete
chaves tanto os verdadeiros motives, o arma ou o modo do assassinato, a
oportunidade, enfim, praticamente todos os elementos que poderiam levar a sua
descoberta. Muitas vezes ele ainda dá um jeito de se associar ao investigador
ou de ficar muito próximo a ele, dando a impressão de que é inteiramente
inocente. Com isso, o padrão foi quebrado e um novo leque
de possibilidades foi aberto, para o delírio dos fãs do gênero!
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Cena de Por que não pediram a Evans? (2009) episódio do seriado de TV Marple, com Julia McKenzie no papel de Miss Marple |
AMOR
& ÓDIO:
5- a
técnica da CONSPIRAÇÃO
Afirmam os estudiosos da psicologia e das ciências do
comportamento humano que o amor e o ódio estão separados por uma tênue linha.
Em todo caso, um dos recursos habilmente utilizados pelos assassinos em algumas
estórias de Agatha Christie para enganar a todos, personagens e leitores, e
livrarem-se da lista de suspeitos é aquele em que dois criminosos conspiram
para o assassinato.
Agindo em parceria, eles unem forças não apenas para darem
cabo da vítima, mas também – e principalmente – para livrarem-se da culpa,
auxiliando um ao outro com álibis e declarações e pistas falsas. E, a fim de
que fique ainda mais complicado para os investigadores distinguirem os fatos
das mentiras, os parceiros criminosos fingem que se odeiam, encenado cenas de
brigas e discussões, ou simplesmente tecendo comentários ácidos uns sobre os
outros. Todavia, como sempre ocorre com a Rainha do Crime, por vezes os
conspiradores são também os assassinos, por outras, são apenas conspiradores de
outras tramas, nada tendo a ver com o crime cometido.
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Cena do episódio Cai o Pano (2013) do seriado de TV Poirot, com David Suchet como Hercule Poirot |
Está se sentindo mais confiante agora para tentar desvendar
o mistério do próximo livro de Agatha Christie antes do final? Acredita que
conhecendo algumas das técnicas utilizadas pelos assassinos eles agora não
conseguirão mais lhe enganar? Não subestime a Rainha do Crime!
Como adiantei na análise de algumas das técnicas acima, a
autora por vezes mistura as técnicas entre si; por outras, as utiliza, mas não
com o assassino, porém com outro personagem que fez ou está fazendo alguma
coisa, e não necessariamente cometeu um crime, mas quer omitir o que fez; por
outras ainda, simplesmente não utiliza nenhuma dessas técnicas em especial.
Então, antes de achar que detém todo o conhecimento necessário para dar uma de
Hercule Poirot ou de Miss Marple, é melhor aguardar o próximo artigo com a descrição das
demais técnicas.
E lembre-se sempre de uma coisa: Agatha Christie não era
nenhuma tola!
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Atenção: ending spoiler a partir deste ponto!
Alguns
exemplos das técnicas utilizadas pelos assassinos acima descritas:
1- Como utilização da técnica do DISFARCE, temos A
Terceira Moça (1966), a jovem
vítima que está sendo envenenada não consegue perceber que sua colega de
quarto, que é atriz, também é sua madrasta.
Em Morte na Mesopotâmia, (1936), uma
mulher se casa com um homem sem se dar conta de que ele é seu primeiro marido,
com quem esteve casada há anos por um breve tempo.
Em Por que não pediram a Evans? (1934),
um homem consegue se disfarçar de outro com sucesso até ser denunciado por ter
uma orelha de formato diferente.
Em Natal de Hercule Poirot (1938) e Depois do Funeral (1953),
diferentes personagens conseguem se passar por parentes que não eram vistos
há anos.
2- Como técnica
de SE FAZER DE VÍTIMA, temos A Casa do
Penhasco (1932), onde uma jovem se faz de vítima de uma série de
tentativas de assassinato para disfarçar sua intenção de assassinar sua prima.
Há
também Poirot Perde Uma Cliente (1937);
O Caso do Hotel Bertram (1965); Convite para um Homicídio (1950); A Maldição do Espelho (1962), nos
quais o assassino finge estar temendo por sua vida e com medo de um ente
próximo.
Em E Não Sobrou Nenhum (1943), o assassino finge a própria
morte para poder continuar matando sem ser um suspeito.
3- Como técnica do ALIBI, temos O Natal de Poirot (1938) e O Homem do Nevoeiro (1928), nos quais o investigador de policia é o assassino.
4- Como técnica da IDENTIDADE SURPREENDENTE, temos Assassinato
no Expresso do Oriente (1934), onde todos são os assassinos.
Em O Assassinato de Roger Ackroyd (1926), descobrimos
ao final que o narrador, Dr. Sheppard, é o assassino.
Em E Não Sobrou Nenhum, (1939), a
estória termina aparentemente com o mistério não solucionado – para o desespero
dos leitores, e somente no postscript, através
de uma carta em uma garrafa lançada ao mar que fora descoberta por um pescador
é que o leitor fica sabendo de tudo.
5- Como técnica da CONSPIRAÇÃO, há Morte na Praia (1941), no
qual dois personagens descobrem o corpo da vitima, e enquanto um vai avisar a
policia, o outro comete o verdadeiro assassinato, sendo que a vitima era na
verdade seu cúmplice.
Em O Misterioso Caso em Styles, (1920), os
conspiradores fingem se odiar mutuamente, quando são na verdade amantes.
Em Morte na Praia, (1941), marido e
esposa deixam aparentar que seu casamento está em ruínas, quando na realidade
estão mancomunados na tentativa de cometer um assassinato.
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Sensacional a sua análise!
ResponderExcluirObrigada, José Igor. Seja sempre bem vindo a minha modesta blogazine! Abçs.,
ResponderExcluirChristy Siqueira
Consegui identificar varios livros onde as técnicas foram usadas. ... parabéns, excelente texto!
ResponderExcluirObrigada, Larissa! Coloquei só alguns exemplos, mas, sim, há muitos outros. Abçs.,
ExcluirCristina Siqueira
Maravilhoso seu texto, parabéns.
ResponderExcluirObrigada, G. Bellucci! Seja sempre bem vinda a minha blogazine! Abçs.,
ExcluirCristina Siqueira