quinta-feira, 24 de julho de 2014

O Método Christie - A ESPERTEZA DOS ASSASSINOS - parte 2


O CAVACO NÃO PULA LONGE DO TOCO!


Cenas variadas do seriado de TV Poirot
obs: O artigo a seguir NÃO contem ending spoiler. Fique tranquilo.

Todas as fotos de cenas de filmes são puramente ilustrativas.



Alguns de meus antepassados, que nasceram e cresceram em fazendas e regiões de campo do Brasil ou de seus países de origem, costumavam me sair com os mais interessantes ditados, muitas vezes engraçados, os quais ficaram guardados para sempre em minha memória. Um desses ditados diz assim: O cavaco não pula longe do toco! Bem, para quem não sabe o que é cavaco, trata-se nada mais, nada meno, do que aquela lasca que se desprende e salta do pedaço de madeira que se está cortando com um machado.


E em que situação se aplica este ditado? Em várias, como acontece com as frases da sabedoria popular. Porém, a mais comum delas é para ilustrar o fato de que as origens de uma pessoa ficam para sempre marcadas nela, de modo que, em qualquer coisa que façam, e mesmo que pretendam, não poderão iludir o olhar mais atento, que sempre encontrará traços destas origens nela. O mesmo ocorre com os assassinos criados por Agatha Christie: eles se originaram na mente criativa e sagaz da escritora, e neles haverá constantemente traços desta esperteza.

Na 1ª parte deste artigo, ao tratar da grande esperteza dos assassinos criados por Agatha Christie para executarem seus propósitos criminosos, desenvolvi uma classificação dos métodos utilizados por eles, que foi a seguinte:

1- Técnica do disfarce:

a) os personagens que fazem uma alteração em sua identidade;

b) os personagens que adotam uma identidade inteiramente falsa.


2- Técnica de se fazer de vítima:

a) a falsa vítima em potencial;

b) a falsa vítima fatal.


3- Técnica do álibi:

a) o álibi sólido;

b) o álibi perfeito.


4- Técnica da identidade surpreendente;


5- Técnica da conspiração;


6- Técnica de mascarar um assassinato com outro:

a) a tentativa de assassinato;

b) o assassinato real;

c) o falso assassinato.


7- Técnica da manipulação;


8- Técnica do blefe:

a) o blefe essencialmente maligno

b) o blefe vingador


9- Técnica do assassino bom moço;


10- Técnica do fiel protetor;


11- Técnica da calúnia.

Nesta segunda parte do artigo, pretendo desenvolver as seis últimas classificações das técnicas listadas acima.

Volto a salientar, todavia, que esta classificação, em primeiro lugar, consiste em apenas uma das várias possíveis perspectivas de análise crítica estruturalista sobre a obra de Agatha Christie; e, em segundo lugar, não pretende ser conclusiva nem tampouco dar conta de todas as técnicas existentes em sua vasta obra das diferentes formas utilizadas pelos assassinos.



CLASSIFICAÇÃO DAS TÉCNICAS DOS ASSASSINOS
parte 2


Cena do episódio A Extravagância do Morto, do seriado de TV Poirot, estrelando David Suchet como Hercule Poirot.


OS MORTOS NÃO FALAM:

6- a técnica de MASCARAR UM 

ASSASSINATO COM OUTRO


Uma forma de desviar a atenção para o crime que se pretende cometer, ou que já se cometeu, é lançar o foco sobre outro crime qualquer. Assim, todos se ocupam daquele outro crime, deixando o caminho livre para as genuínas intenções do malfeitor. No caso do assassino, se todos os olhares investigativos se voltarem para outra morte, talvez ninguém perceba o assassinato que ele quer cometer...

A técnica de mascarar um assassinato com outro se divide em três tipos:

a) o da tentativa de assassinato;

b) o do assassinato real;

c) o do falso assassinato.

Esta técnica é mais simples do que parece. Em algumas estórias, o assassino tem sorte e ocorre oportunamente uma tentativa de assassinato – mas esta ação frustrada para acabar com a vida de alguém não foi realizada pelo assassino em questão. Espertamente, ele, que vai cometer ou já cometeu seu assassinato, se utiliza daquela tentativa para disfarçar o seu próprio ato, tentando, por exemplo, fazer com que todos pensem que os dois crimes estão relacionados, que foram cometidos pela mesma pessoa, ou algo assim.

Pode ser, no entanto, a sorte do assassino seja que tenha havido um assassinato real e não uma tentativa frustrada. Mas este assassinato foi cometido por outra pessoa, não por nosso assassino em questão. Aproveitando-se desta oportunidade, ele então providenciará do mesmo modo para que todos acreditem que há uma relação entre os dois crimes, a fim de mascarar sua identidade e motivos.

Outros assassinos, porém, preferem dar uma ajudinha para a sorte. Eles se utilizam do instrumento de um falso assassinato a fim de criar uma oportunidade para cometerem o verdadeiro assassinato que pretendem. Em geral, alguém morre de causas naturais ou acidentais, mas o assassino manipula esta morte fazendo parecer que foi um assassinato. Alguém chama a polícia, às vezes ele mesmo, e enquanto todos estão atentos aos acontecimentos envolvendo o primeiro morto, o assassino aproveita a chance para matar quem ele realmente pretendia.


Cena do episódio A Terceira Moça, do seriado de TV Poirot, estrelando David Suchet como Hercule Poirot.



HAVERÁ PERDÃO PARA OS TOLOS?

7- A técnica da MANIPULAÇÃO


Quando uma pessoa resolve matar alguém, mas manda ou paga para que outro faça o trabalho sujo, se descoberto o esquema, ambos são considerados igualmente culpados do terrível crime. Ora, então, para extinguir até mesmo esta possibilidade, que tal fazer com que outra pessoa dê cabo da vida da vítima, porém, de um jeito que esta outra pessoa nem perceba a tolice que está cometendo?

É o como opera uma das mais terríveis mentes criminosas criadas por Agatha Christie: a do assassino manipulador, que induz uma pessoa, geralmente tola ou crédula, a cometer o assassinato em seu lugar. E, como se não bastasse, cria uma situação na qual o desavisado assassino de fato comete o crime sem sequer ter a noção de que está causando a morte de alguém.


JOGADA DE MESTRE:

8- A técnica do BLEFE

Quando todas as evidências apontam para um suspeito e esta pessoa em particular aceita tudo sem protestar, cabisbaixa, resignada, entregando-se ao seu cruel destino voluntariamente, estendendo os braços para que seja algemada e levada a julgamento, com olhar de profunda tristeza, você, ainda que seja por alguns breves segundos, não fica com uma pedacinho do coração partido e com outro pedacinho da mente desconfiado de que aquela pessoa não deve ser afinal o verdadeiro criminoso? Não dá uma vontade de se materializar na estória e sair investigando o caso por conta própria a fim de encontrar o verdadeiro culpado e livrar o pobre da pena de morte? Aliás, a propósito, este é exatamente o mesmo enredo de dezenas de filmes e séries de TV, não é mesmo?

Hercule Poirot, por exemplo, algumas vezes se encontrou nesta situação e saiu ele mesmo em busca da solução do crime e do verdadeiro culpado com o propósito de livrar um inocente da condenação. Agora, veja só: e se a tal pobre pessoa que se deixa prender tão resignadamente, causando tanta pena e simpatia em todos nós, for de fato o verdadeiro assassino? E se ela estiver apenas fingindo ser uma pobre vítima do destino e das provas que apontam para ela? Que jogadora terrivelmente ousada seria esta então! Que grande blefe! E que assassino frio e esperto!

A técnica do blefe se subdivide em dois tipos:

a) o blefe essencialmente maligno

b) o blefe vingador

O assassino que é essencialmente um blefador, se veste da mais perfeita vítima das circunstâncias, lançando mão de artifícios malignos os quais, ao mesmo tempo, permitem que se construam provas contra ele, mas também, fazem com que ele pareça ser um inocente que deu muito azar. Fingindo-se de um tolo que caiu em uma terrível cilada, o assassino ousado que lança mão desta forma de blefe apela para os efeitos psicológicos que pode causar sobre os outros personagens, especialmente sobre os investigadores e o detetive.

Ele faz coisas como recusar-se a se defender, tentar se incriminar com provas falsas, fingir confessar o crime para proteger um ente querido, ser pego com uma expressão aterrorizada diante da vítima e com a arma do crime na mão, como se estivesse em choque e a tivesse pego por reflexo. Enfim, ele não esconde o fato de ser o assassino: apenas se esforça para cativar a simpatia dos outros e a criar uma situação que faz com que ele pareça tão inocente como um bebê indefeso. A consequência prática deste blefe é que, caso seja julgado e inocentado, ele não poderá ser julgado novamente pelo mesmo crime – aquele crime o qual, quase íamos nos esquecendo,  ele cometeu de verdade!

Já o assassino blefador vingativo se encontra entre uma das mentes mais cruéis do universo de Agatha Christie. Trata-se daquele personagem que, sabendo que irá morrer de qualquer forma, por exemplo, por uma doença fatal ou porque está decidido ao suicídio, resolve criar todo uma estratégia para que sua morte pareça ter sido um assassinato cometido justamente por aquela pessoa de quem pretende se vingar.


Cena do episódio Mistério no Caribe, do seriado Marple, estrelando Julia McKenzie como Miss Marple.


LOBO EM PELE DE CORDEIRO:

9- A Técnica do bom moço ou da boa moça

Trata-se de um consenso o fato de que aquela pessoa que encontra o morto e chama a polícia encontra-se, a princípio, fora da lista de suspeitos de serem o responsável pela morte. O mesmo vale para os casos em que alguém contrata um detetive particular para investigar um assassinato. Afinal, acredita-se que o interesse do assassino seja que o seu crime fique sem ser descoberto, e, portanto, não seria ele quem levantaria a lebre para que se resolva o enigma.

A partir da mesma ideia, se o detetive se envolver totalmente por acaso na investigação de um caso de assassinato, a pessoa que representou o elo puramente coincidente entre o detetive e o caso em questão não tem nada a ver com o crime, certo? Errado! Afinal, coincidências não existem. Aquele personagem aparentemente tão inocente, que aparentemente sem qualquer premeditação serviu para conectar o investigador ao crime pode ser, na verdade, o cruel assassino, e a presença do detetive no caso pode ter sido secreta e previamente planejada.


MELHORES AMIGOS PARA SEMPRE

10- A técnica do fiel protetor

O que não faria uma boa mãe ou um bom pai para proteger seu filho? Ou uma irmã, um irmão, um marido, uma esposa, um filho, uma filha, um parente ou um amigo fiel para proteger alguém que ama profundamente da terrível pena capital? Em algumas estórias engendradas por Agatha Christie, o assassino confesso não é o verdadeiro assassino: é alguém que, em nome do amor ou da honra, chama para si a falsa responsabilidade a fim de proteger o nome e a vida de alguém.

Em outros casos, todavia, os motivos não são tão nobres, mas, mesmo assim, alguém acaba acobertando o verdadeiro criminoso de algum modo, protegendo-o e impedindo que o crime ou sua identidade sejam revelados. Agindo a partir de um senso de lealdade ou por puro interesse, o fiel protetor impede que o criminoso pague por seu ato, seja através de falso testemunho, do silêncio, de mentiras, ou de algum artifício semelhante.


Cena do episódio Os Elefantes não Esquecem, do seriado de TV Poirot, estrelando David Suchet como Hercule Poirot.



COM AGATHA CHRISTIE NUNCA SE SABE!

11- A técnica da CALÚNIA

Por último, a mais tradicional entre todas as técnicas utilizadas pelos assassinos a fim de se eximirem da culpa: lançar a responsabilidade pelo crime sobre outra pessoa. Porém, como estamos tratando de Agatha Christie, esta técnica tão tradicional não poderia ter sido utilizada pela escritora de forma comum e previsível.

Para não estragar aqui a surpresa de algumas estórias da Rainha do Crime, eu prefiro aqui, ao tratar da técnica da calunia, a simplesmente me limitar a dizer que, como muitos já sabem, com Agatha Christie nunca se sabe!


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Atenção: ending spoiler a partir deste ponto!

Alguns exemplos das técnicas utilizadas pelos assassinos acima descritas:

6- Como técnica de MASCARAR UM ASSASSINATO COM OUTRO, podemos citar Depois do Funeral (1953) e A Casa Torta (1949), onde ocorrem tentativas de assassinato para poder desviar a atenção do verdadeiro crime.

Há ainda Cartas na Mesa (1936), onde o assassino encontra a vítima dormindo, mente para a criada que ela foi morta e depois a mata de verdade.
Em Depois do Funeral (1953), todos suspeitam de uma morte natural depois que alguém intencionalmente sugere que tenha sido um assassinato.
Em Gato Entre os Pombos (1959), apenas 2 das 3 mortes foram executadas pelo assassino.

7- Como técnica da MANIPULAÇÃO, podemos observar Cem Gramas de Centeio (1953), no qual uma criada tola é manipulada pelo verdadeiro assassino a envenenar seu patrão colocando em sua geleia o que ela pensou ser um remédio.

8- Como técnica do BLEFE, temos O Misterioso Caso de Styles, (1920), onde o aparente assassino – o marido da vítima – que se comporta de modo estranho, se recusa a se defender e tenta se incriminar com falsas provas.
Em Morte na Rua Hickory, (1955), tantas são as pistas contra o assassino que parece que ele está sendo vítima de um esquema para incliminá-lo injustamente.
Em A Morte de Lord Edgware, (1933), a assassina anuncia abertamente para o mordomo que cometerá o assassinato, mas engendra um álibi no dia em que o crime ocorre para se livrar das suspeitas.
Em O Ninho da Vespa (1935), o assassino sabe que morrerá de uma doença terminal e arquiteta um plano para cometer suicídio e depois que sua morte seja atribuída a outra pessoa.
Em Marco Zero (1944), o assassino psicopata falsifica provas para parecer que ele cometeu um assassinato brutal, mas como parte de um elaborado plano para atribuir a sua ex esposa a culpa por outro assassinato.

9- Como técnica do assassino bom moço, temos O Assassinato de Roger Ackroyd (1926), no qual o assassino, Dr, Sheppard, era não apenas o narrador da estória como também havia se associado a Poirot nas investigações do crime.
Em A Morte de Lord Edgware, (1933), a assassina pede a Poirot que lhe ajude a conseguir um divórcio e arquiteta um esquema para parecer que ela não possui qualquer motivo para matá-lo.
Em A Casa do Penhasco (1932), o assassino, aparentemente por acaso, envolve Poirot na investigação do crime.

10- Como técnica do fiel protetor, A Mansão Hollow, (1946), onde Poirot chega à cena do crime a tempo de testemunhar uma mulher com uma arma nas mãos diante do corpo morto de seu marido, porém, diferentes testemunhas incriminam-se umas as outras na tentativa de livrar a mulher por quem nutriam especial simpatia.
Em Elefantes Nunca Esquecem (1972), a própria vítima pede ao assassino que troque de identidade com ela por uma questão de devoção familiar.
Em O Caso do Hotel Bertam (1965), Bess Sedgwick confessa que foi ela quem cometeu o assassinato e depois se suicida a fim de proteger sua própria filha, a verdadeira assassina.
Em A Maldição do Espelho (1962), Jason Rudd age sempre tentando proteger sua desequilibrada esposa Mariana, que havia matado várias pessoas.

11- A técnica da calúnia pode ser evidenciada em Os Crimes ABC (1936), onde o assassino envia cartas a Poirot antes dos crimes serem cometidos, coma intenção de lançar a culpa pelos crimes sobre uma pessoa inocente.

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